Colorado do Brás
Colorado divulga sinopse do enredo sobre Carolina Maria de Jesus
Carnavalesco André Machado pediu tom de coragem no samba durante explanação virtual

Na última segunda-feira (18), a Colorado do Brás divulgou a sinopse do enredo  “Carolina — A Cinderela Negra do Canindé”, desenvolvido pelo carnavalesco André Machado. O projeto para o próximo Carnaval vai homenagear a vida e a história da escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, que já havia sido mencionada em outros enredos mas agora ganha um desfile próprio.

Durante uma transmissão ao vivo na página da escola no Facebook, André Machado leu e explanou o projeto aos compositores de samba-enredo pedindo coragem na composição das obras que entrarão na disputa. Leia a sinopse:

Chegou o carnaval!

De Colorado me enfeitei

Para a grande noite.

Escolhi o vestido mais bonito,

Rodado e Colorido,

Bordado de estrelas e estórias.

Nos pés, sapatos de cristal,

Refletindo minhas andanças;

Na cabeça, além do adorno tradicional,

Há borboletas de memórias,

Que fiz questão de colocar no papel.

 

Eu sou Carolina Maria de Jesus –

Nua e crua, escritora de nascença,

Negra e poetiza da vida.

Calei-me para o sofrimento,

Gritei mais alto que pude

Para o destino que eu escolhi.

Eu sou a filha de Dona Cota,

Do “Quilombo do Patrimônio”,

Menina Bitita,

Da pequena cidade de Sacramento;

Sonhadora e curiosa,

Chamada por muito de “perguntadeira”,

Que mesmo vivendo sem eira e nem beira,

Desde pequena, já lia de um tudo

E fugindo da realidade do mundo,

Ao ler “A Escrava Isaura”,

Pela Literatura me encantei.

Já carpi roçado na aurora,

Enxada nas mãos calejadas,

De sol a sol, o ano inteiro.

E, descontente com a lida, poema escrevi,

“O colono e o fazendeiro.”

 

Fui jovem avoada, não parava em serviço.

Em meio aos reboliços, muito vexame passei

 – Valha-me São Cipriano!

Caluniada, “Carolina do diabo”,

Até cadeia peguei.

 

Mas nunca emudeci, forte fiquei

E as feridas que em minhas pernas ardiam

Não foram capazes de cessar o meu caminhar,

Pois meu sonho era maior que a dor –

Ainda tinha o mundo para conquistar

 

Foi então que, em mim, a vontade de partir

 Abriu-se feito o nascimento de uma libélula

E, encorajada pela ação do tempo,

Tomada pela forte intuição do vento,

Me deixei levar.

 

Então, em São Paulo,

Na Estação da Luz cheguei.

A visão pueril que eu fazia desta cidade

Logo foi apagada pela dura realidade

Que aqui enfrentei.

Na via-crúcis de cortiços fétidos,

Largada nas marquises dos viadutos,

Pelas ruas, sob o sereno das noites frias,

Vivendo tal qual uma mendiga, mas

Ainda assim, com o peito cheio de esperança.

 

Como uma “Gata Borralheira” fui à luta

Queimando feijão em casa de madame.

Embora muitas vezes abatida pela fome,

A cozinha nunca foi meu lugar predileto;

Nas mansões, eu era dada às bibliotecas –  

Como a do Dr. Zerbini, “o mago do coração”

– Onde eu podia me alimentar de letras,

Divagando sem notar o passar das horas.

 

Como doméstica escrevia bastante…

Não tanto como eu queria, obstante,

Dada a correria que a labuta exigia.

E meu excesso de imaginação, quem diria?!

Me entristecia ao esperar,

As migalhas de reconhecimento

E a atenção que não vinham,

Nem todo mundo queria ouvir a poetisa:

Mulher preta e pobre não tinha vez não;

Era transparente por ocasião.

 

Vida sofrida, sem tento e nem comida,

Fui parar no Canindé – que desilusão!

No “Quarto de Despejo” da cidade

Lugar sem dignidade, feio de se ver

Às margens do rio onde se lavava roupas,

O famoso Tietê!

 

Da Igreja de Nossa Senhora do Brasil

Fiz meu pequeno casebre de ripas

De onde podia se ver a chuva,

O sol ou a lua, por toda sorte de vão.

E naquele barraco úmido e ambiente vil,

Principiei-me no cargo de mãe solteira,

Pelas fofoqueiras, mulher de má reputação –

Que judiação!  Outrora perdi um filho,

Contudo, os que vieram depois nasceram sãos.

Primeiro vingou João José,

Que logo ganhou José Carlos de irmão;

Por último, a menina Vera Eunice,

Pra dividir a dor e o pão.

 

Foram tempos difíceis que vivi:

Pelas ruas catando xepa, lixo e papelão

Numa batalha diária pela sobrevivência,

Encarando doença e até humilhação.

Para dar o mínimo para meus filhos

Nunca tive escolha e nem opção;

Pois a fome sentida na favela

Tinha cor e era amarela,

Triste fonte de inspiração

Da sucursal do inferno,

Que coloquei no meu diário

Feito com folhas de caderno vagabundo,

Que eu encontrava perdidas no mundo,

Ao me agachar pelo chão.

 

Detalhei personagens ordinários:

Mulheres escandalosas, submissas,

Valentões, pinguços fazendo arruaças,

Zombando da própria desgraça,

Parindo e vivendo famintos como ratos,

Naquele gabinete do diabo.

 

Eu tinha pena dos meus filhos,

Convivendo com aqueles cidadãos,

À margem da sociedade,

Na boca de cena daquele teatro sujo,

Que me fazia sentir nojo de tudo,

Como objeto fora de uso,

Digno de um quarto de despejo.

 

O centro da cidade era diferente,

Vendo o conforto daquela gente,

Meus devaneios me levavam

Para a sala de visitas de um grande palácio,

Com seus lustres cristalinos,

Seus tapetes de veludo fino

E almofadas de cetim.

 

A favela não era lugar pra mim.

Não se via jardins tampouco sala de jantar.

Mesmo acordada, sonhava em sair de lá,

Mas a realidade cruel insistia impedir:

Afinal de contas…

Não nasci homem, nem branco;

Não tive berço de ouro, garanto,

Teria que labutar duas vezes mais

Para um teto melhor conquistar.

 

Então,

Trabalhei feito burro de carga,

Sofri preconceito e fome,

Criando sozinha meus filhos

Com meu sobrenome – Jesus,

Que de tanto ouvir minhas preces,

Como num conto de fadas,

Enviou-me uma espécie de fada madrinha,

Que não foi à favela fazer mágica,

Transformar ratos em cavalos;

Tampouco moranga em carruagem;

Foi lá fazer apenas uma reportagem

E me encontrou.

 

 Audálio Dantas era seu nome,

Repórter do popular e renomado

 Jornal “Folha da noite”.

Um jornalista visionário,

Que ao se interessar pelo meu diário,

Em formato de livro, o publicou.

E de repente, de um dia para outro,

Eu, que era a escritora improvável da favela

Do Canindé, me tornei a “Cinderela”,

Ingressando no baile mais aguardado.

 

Paradoxalmente,

Mesmo recebida com pompas de fidalguia,

Lembrada era, pelo lugar de onde eu vim,

Sendo a autora de um best-seller,

A mais concorrida e comentada,

Defensora de Getúlio Vargas,

A “língua de fogo” das mazelas sociais;

Ainda assim, a favelada,

Aplaudida e apedrejada pela miséria, enfim.

 

Entretanto, não me deixei abater –

Sob os olhos da inveja e da soberba

Dancei a valsa do sucesso pra valer,

E sem perder o compasso,

Rodopiei pelo mundo em outras línguas;

Banho de loja tomei;

Deixei de viver às minguas

E numa “Casa de alvenaria”

Com as crianças entrei.

 

Estampei capas de jornais do momento

Ao lado de artistas de muito talento

Que queriam, na verdade, de perto ver

A catadora de papelão que “enriqueceu”,

A “Mãe Preta” dos negros e ex-favelada

Reverenciada no rádio, teatro e TV,

Até em filme alemão fui aparecer,

Me agarrando às oportunidades que surgiam.

 

Ganhei o título de “Cidadã Paulistana”,

Marquei presença vip em concursos de beleza

E nos encontros com mestres da literatura –  

Que a essa altura, na maior gentileza –

Faziam questão de me cumprimentar.

 

Nessa época, extasiada, me arrisquei a cantar

Para realizar o meu desejo, sem me importar,

Com o que iriam dizer e até criticar.

As minhas composições vindas de lampejo –

A Vedete da favela, O Malandro, entre outras,

Autorais do LP “Quarto de despejo”,

Que com a minha inconfundível voz fina

 Fiz questão de lançar.

 

Se antes da fama não era lembrada,

Passei a ser a notícia derradeira,

Aquela que mais vende jornal.

Com meu cartaz de grã-fina,

Que a imprensa adorava noticiar,

Vieram também as aves de rapina,

Querendo tirar proveito do que ganhei,

E eu, comprando mais do que precisando,

Doando, emprestando e não cobrando,

Ingênua, com pouco dinheiro fiquei.

E minha vida mudou novamente,

De repente, peguei as crianças e fui embora.

Recomeçar em Parelheiros.

Havia chegado a hora

De me reencontrar com Bitita,

A menina sonhadora que um dia eu fui.

E assim, voltar a plantar e a colher,

E com tranquilidade escrever –

O que há tempos não fazia mais;

E lá viver em paz, até o fim.

 

Hoje estou orgulhosa

Vendo a menina Vera calçar lindos sapatos,

Enfeitados de conhecimento,

Num país que não se importa com o talento,

Que não incentiva a cultura,

Tampouco a literatura.

Caminhos que percorri,

Com persistência e vitória

E, relembrando cada momento que vivi,

Representados de forma notória,

Nessa festa sem igual,

Me sinto feliz!

 

Vejo que o pé do sapato que faltava,

Nessa analogia de Cinderela,

Esquecido na escadaria da história,

A Colorado do Brás traz agora:

O reconhecimento do povo –

 

Algo mais valioso

Que alguém pode ganhar!

 

E, se esse foi o meu fim,

Você que se pôs a ler certo

Pelas linhas tortas da minha vida,

Deve estar se perguntando nesse instante:

Como isso é possível?

É que sempre estarei viva no coração

De quem acredita, assim como eu

E outras tantas Carolinas,

Mulheres negras, mães solteiras

Faveladas e periféricas…

Na força motriz que me trouxe até aqui

E que sirva como um grito de alforria

– Coragem!

Assista à explanação:

O enredo

Leitora voraz, a mineira Carolina Maria de Jesus viveu a maior parte de seus dias em São Paulo como catadora de papelão. Veio para a capital paulista em busca de um sonho e enfrentou todo tipo de infortúnio na comunidade do Canindé, experiência que fez surgir o primeiro livro publicado. O sucesso da obra mudou sua condição social por algum tempo. Quando morreu, em 1977, Carolina já não tinha tanto poder aquisitivo. “Ela teve uma vida de gata borralheira, mas teve uma noite de cinderela e o sonho dela, como aconteceu na história da Cinderela, foi até a meia-noite, porque, apesar dela ter ganhado grana e ter mudado de vida, ela voltou à estaca zero, apesar de já bastante conhecida no meio literário”, explica o carnavalesco André Machado. Leia a entrevista completa aqui.

Com “Que Rei Sou Eu?”, desenvolvido pelo carnavalesco Leonardo Catta Preta, a Colorado do Brás ficou com a 12ª colocação entre as 14 escolas do grupo Especial, somando 268,7 pontos no Carnaval SP 2020.