“Vai um cortejo funfun, tocando seu ijexá. A soma de cem é um, uma só voz a cantar”. Os versos da música de Luiz Antônio Simas inspiraram o carnavalesco Sidnei França na criação do enredo “Afoxé de Oxalá — No ‘Cortejo de Babá’, Um Canto de Luz em Tempo de Trevas”, projeto da Águia de Ouro para o próximo Carnaval. O tema é, em sua essência, uma “mensagem de paz, de fé, de amor, respeito e esperança”, explica Sidnei.
A ideia nasceu de um post nas redes sociais do historiador, escritor, professor e compositor, cuja obra é bastante conhecida pelo carnavalesco da campeã do Carnaval SP 2020. “Ele fez uma postagem no Instagram sobre uma canção que compôs há alguns anos chamada ‘No cortejo de Babá, Afoxé de Oxalá’ e eu falei ‘poxa vida, que música bonita, que transmite paz, transmite um acalanto’. A música é uma mensagem de alento para horas difíceis e uma mensagem de gratidão nos momentos de fartura, de bonança”, conta. Motivado pela reflexão da letra, decidiu propor à Águia de Ouro carnavalizar o sentido da obra. O enredo, portanto, pretende retratar tudo o que permeia o arquétipo do orixá Oxalá e os ensinamentos e valores humanos preciosos: “É um encontro de uma pesquisa ampla e profunda da mitologia, que é muito bonita por si só, mas não só isso, também tem aquele sentimento embutido na mensagem que é a paz, o acalanto, o alento e o consolo”.
Com tantas ideias a serem transmitidas, Sidnei França avalia que este vai ser um desfile repleto de emoção, a começar por uma representação do ritual das águas de Oxalá.“Tem uma série de cargas simbólicas, de mensagens decodificadas no ritual das águas de Oxalá que vai dar vazão para todas as outras mensagens que o enredo pretende passar, porque além da paz, que é um conceito universal e amplamente atribuído à figura de Oxalá, a escola também vai trazer mensagens correlatas, por exemplo, de fé, de amor, respeito e esperança, que são valores muito ligados à positividade”. Para além do enredo, Sidnei conta ainda com a confiança e a autoestima da comunidade campeã. “Isso tudo agora soa como valores muito abstratos, mas, durante o desfile, vai acontecer de uma maneira concreta, palpável que vai trazer menções cotidianas inclusive, vivências diárias de necessidade da valorização da fé, do amor, do respeito, da esperança e principalmente da paz. Eu acredito que vai ser um desfile de uma carga emotiva muito ampla”.
O carnavalesco ressalta, por outro lado, que a necessidade de trazer este tema para a Avenida não é apenas provocada pela pandemia causada pelo novo coronavírus no Brasil e no mundo, desde dezembro de 2019, “mas principalmente pelo contexto da humanidade atual, que é tudo muito combatido, é tudo muito difícil, as pessoas se desentendem”. Chamar a atenção para os ensinamentos de Oxalá, portanto, é uma tentativa de mudar o foco para a afetuosidade. “Nós estamos numa fase da humanidade em que a leveza de alma é fundamental. As pessoas precisam ter empatia, elas precisam se entender mais, elas precisam entender as necessidades e os olhares do outro, está muito [focado no] ‘eu’”, explica.
Com “Afoxé de Oxalá — No ‘Cortejo de Babá’, Um Canto de Luz em Tempo de Trevas”, a Águia de Ouro vai buscar o bicampeonato. Sidnei França projeta um Carnaval grandioso, mas a intenção transcende o limite espaço-tempo: “Que ele seja um legado, para que a mensagem sobreviva a esse Carnaval de 2021 e reverbere para todos os meios, os religiosos, educativos, acadêmicos, os guetos, as plataformas de comunicação, que ele sobreviva a função de dar embasamento a um desfile de um determinado Carnaval, para que a mensagem seja tão transcendental que ela consiga reverberar e inspirar futuras gerações, futuros estudiosos de Carnaval que, quando chegarem no capítulo do Carnaval de 2021, vejam no desfile, no enredo, na proposta da Águia de Ouro, no projeto da Águia de Ouro uma razão para falar “olha, esse tema merece uma consideração diferenciada, porque ali existe pesquisa, existe intensidade de narrativa, existe uma mensagem decodificada que nos faz refletir e sempre buscar aprimorar”.
Leia a entrevista completa:
Por que falar sobre os ensinamentos de Oxalá?
Sidnei França: Para responder essa pergunta, eu preciso ir na essência da questão. Primeiro que eu já tenho uma ligação e um contato com a obra do historiador, escritor, professor e compositor Luiz Antônio Simas, que é um cara muito respeitado no Rio de Janeiro por escrever sobre brasilidades como folclore, Carnaval, cotidiano, crônicas da vida carioca em geral e em especial da vida sambista. Ele fala muito sobre tudo que é brasileiro e isso acaba ressoando em pessoas que, como eu, tem muita admiração pelo tema, por questões que são muito brasileiras. Observando a obra, ele fez uma postagem no Instagram sobre uma canção que ele compôs há alguns anos chamada “No cortejo de Babá, Afoxé de Oxalá” e eu falei ‘poxa vida, que música bonita, que transmite paz, transmite um acalanto’. A música é uma mensagem de alento para horas difíceis e uma mensagem de gratidão nos momentos de fartura, de bonança. Eu achei aquela mensagem muito bonita e resolvi sugerir à escola trazer essa canção pro ambiente do Carnaval, ou seja, a ideia é carnavalizar uma música de uma maneira que a gente extraia toda a mensagem dela, tanto literal, que vem no sentido da costura da mitologia de Oxalá — que é muito bonita e fala sobre os meandros do rito de Oxalá, que é um orixá muito ligado, não só a paz, que é um senso comum, acaba sendo um clichê da figura, do arquétipo de Oxalá, mas também a função de ser um apaziguador das animosidades dos outros orixás. Afinal de contas, é preciso entender que os orixás nem sempre transitam só pelas suas qualidades positivas. Segundo as tradições africanas, os orixás se zangam, se irritam muito facilmente quando algo que não é do perfil deles é realizado ou contrariado. Voltando à questão, esse tema aborda em primeiro lugar a mitologia de Oxalá, no sentido de pegar o arquétipo, as qualidades, as características próprias do que se diz desse orixá, mas a música também tem uma levada, a melodia, a métrica dela é toda pensada para você ouvir e relaxar, para ouvir e sentir aquele acalanto. Então é um encontro de uma pesquisa ampla e profunda da mitologia, que é muito bonita por si só, mas não só isso, também tem aquele sentimento embutido na mensagem que é a paz, o acalanto, o alento e o consolo. Todo esse universo da música é o que a escola pretende levar para o desfile.
A gente não pode resumir a necessidade de falar em Oxalá, em paz, em acalanto, em alento, em consolo somente pela questão da pandemia, até porque isso é transitório e — queiramos nós — em breve acaba, mas principalmente pelo contexto da humanidade atual, que é tudo muito combatido, é tudo muito difícil, as pessoas se desentendem. A própria política brasileira hoje é extremamente polarizada. As pessoas entram nas redes sociais numa virulência, sabe, num desejo de ser juiz e determinar o que é certo, o que é válido, o que o pensamento coletivo tem que adotar. O mundo hoje está muito cruel nesse sentido, do uso da voz para a agressão, isso desde as esferas de poder mundiais, a disputa de poder entre países, até a vida cotidiana mesmo, as pessoas que se encontram na rua e se olham feio, não dão bom dia, não se irmanam.
O enredo tem essa linguagem que vem na essência da sua pergunta: por que os ensinamentos de Oxalá? Para poder ressoar uma mensagem leve, positiva, agradável. Nós estamos numa fase da humanidade em que a leveza de alma é fundamental. As pessoas precisam ter empatia, elas precisam se entender mais, elas precisam entender as necessidades e os olhares do outro, está muito “eu”. Isso vamos concatenar no contexto do Carnaval.
Nós precisamos dar uma baixada nessa carga de necessidade de ganhar a qualquer preço. Lógico que todo mundo quer fazer Carnaval para ganhar, é gostosa a sensação do título, mas é mais gostosa ainda quando é uma sensação plena. Eu até falei isso na minha fala do lançamento do enredo na Águia de Ouro. Eu acho que esse título da Águia de Ouro é mais importante não para mostrar para o mundo todo que a Águia de Ouro foi superior de alguma maneira, tecnicamente ou no seu projeto, diante de outras 13 escolas. Eu acho que é muito mais importante olhar para dentro, o quanto esse título era esperado e fez bem para a autoestima de uma comunidade de 44 anos que sempre lutou para se fazer enxergar, para se fazer ser respeitada. E não é esse respeito da vaidade nas mídias e nas redes sociais, é aquele respeito próprio, sabe, o amor próprio, a autoestima elevada pela elevação do potencial de realização, de cumprir com o projeto e com uma mensagem que nasceu dentro, ganhou o mundo e orgulhou a dentro de novo. Então, acho que, resumindo tudo isso que eu falei, falar dos ensinamentos de Oxalá é para mostrar que você consegue ser forte, competitivo, altivo na sua proposta, seja ela qual for na vida, e sem perder a leveza, sem perder a empatia, e não se deixar levar por sentimentos circunstanciais, momentâneos e pequenos. Oxalá é grandeza. Uma amiga minha me disse algo que eu acho perfeito: Oxalá é uma energia na medida, nem mais e nem menos. Ele te traz, ele te oferece aquilo que ele é, que é o tudo e o nada. Ele é o equilíbrio, é a energia constante que mantém a vida.
Como você pretende abordar essa história na Avenida e o que o público pode esperar desse desfile?
Sidnei França: O enredo vai respeitar todos os ritos, as tradições e as características próprias já amplamente conhecidas do arquétipo de Oxalá através da cultura negra, não só da religião e das mensagens decodificadas pelo candomblé. O desfile vai ter uma ampla carga, obviamente, dessa roupagem africana que habita o imaginário e o senso comum das pessoas. Eu vou colocar muito do meu estilo, do meu jeito de enxergar o que é uma criação carnavalesca, e isso as pessoas só vão ter contato já no desfile, quando entenderem o conjunto estético para a proposta da mensagem a ser transmitida. Mas, falando da narrativa do enredo, que já dá uma sensação um pouco mais direta, primeiramente nós vamos fazer uma mensagem, uma citação, melhor dizendo, ao ritual das águas de Oxalá, que é um ritual na Bahia, já no Brasil até, adaptado pela cultura na assimilação do candomblé pela realidade negra no Brasil em que resgata um rito mitológico e ancestral para mostrar a reverência dessa religião à figura de Oxalá. Tem uma série de cargas simbólicas, de mensagens decodificadas no ritual das águas de Oxalá que vai dar vazão para todas as outras mensagens que o enredo pretende passar, porque além da paz, que é um conceito universal e amplamente atribuído à figura do orixá, a escola também vai trazer mensagens correlatas, por exemplo, de fé, de amor, respeito, esperança, que são valores muito ligados à positividade.
As pessoas podem esperar um desfile com uma carga emotiva muito forte. E quando eu falo de carga emotiva, não é simplesmente o apelo à religiosidade afro-brasileira, ligada ao candomblé, às tradições africanas cultuadas e propagadas da Bahia para o restante do Brasil. Existe uma universalidade nesse enredo que eu acho que é maior, que é a questão da mensagem de paz, de fé, de amor, respeito, esperança. Isso tudo agora soa como valores muito abstratos, mas, durante o desfile, isso vai acontecer de uma maneira concreta, palpável, que vai trazer menções cotidianas, inclusive, vivências diárias de necessidade da valorização da fé, do amor, do respeito, da esperança e principalmente da paz.
Eu acredito que vai ser um desfile de uma carga emotiva muito ampla. E também vale frisar que, além de todo o valor do enredo, tem sim a emoção da comunidade, que tem a sua autoestima elevada a partir de um primeiro título, que impulsiona a motivação a níveis imensos. Eu acredito que seja um desfile que vai trazer muita mensagem positiva e principalmente muito conhecimento para as pessoas.
Aliás, falando já nisso também, acho muito importante frisar aqui sobre a importância que existe hoje no discurso das escolas de samba de poder resgatar os seus valores essenciais, a sua identidade negra, a sua fluência e até a autoimagem ao reafirmar uma cultura do samba que é calcada com muita contribuição negra, africana, baiana, enfim, toda vez que uma baiana gira na Avenida é a Tia Ciata se manifestando — uma mãe de santo baiana que se radicou no Rio de Janeiro e é tida como a mãe do samba. Então, as mães do samba, que são as baianas, são a representação contemporânea da figura de Tia Ciata. Toda vez que um ritmista na bateria inicia o toque do seu instrumento, aquilo é a comunhão de ritmo que lembra o ogã, que é um cargo de terreiro que chama o batuque pra que haja catarse, pra que as pessoas se envolvam mais do que intelectual, mas também emocional e espiritualmente naquilo tudo que está acontecendo. Tudo isso não pode ser negado, não pode ser esquecido. E, vez ou outra, as escolas — todas elas — precisam revisitar suas origens, seus sentidos de ser. Eu acho que chegou a vez da Águia de Ouro, de trazer para o público essa verve da vivência do samba, que é falar do amanhã, do hoje, mas sem esquecer o ontem também.
Qual a sua expectativa pessoal para esse projeto?
Sidnei França: Eu, como carnavalesco, muitas vezes sinto que o quesito enredo é muito subentendido. As pessoas falam “ah, mas o que é o enredo, é só mesmo a sequência de alas, a montagem, o roteiro do desfile?” e não. Pra mim, como carnavalesco, como criador de um desfile e responsável por toda a decodificação estética e visual do que vai representar durante o desfile, pra mim, o enredo é muito mais do que uma sequência de informações que respeitam uma ordem de início, meio e fim, que o desfile tem que começar e terminar. Para mim, enredo é a responsabilidade que o carnavalesco tem ao propor e a escola ao assumir aquele discurso perante um público, que hoje é extremamente diversificado, pulverizado. O público que acompanha o Carnaval, devido ao advento da internet, é atemporal, não é datado. O desfile vai ser visto daqui a um mês, daqui a um ano, daqui a 10 anos e olhe lá, daqui a 10 décadas, 100 anos, mil anos e as futuras gerações ainda podem utilizar dessas mídias que estamos gerando hoje, desse conteúdo que estamos gerando hoje para entender como a gente fez — para eles, fazia — esses carnavais, então eu entendo que é uma grande responsabilidade. Eu sempre digo às pessoas mais próximas a mim que hoje, um carnavalesco consciente é um agente de cultura, é um responsável, juntamente com a escola, que é quem dá suporte, quem dá plataforma para que todas as ideias aconteçam de fato. Mas o carnavalesco, antes de mais nada, é um agente cultural propagador de mensagem. Eu tenho dito a muitos amigos meus uma questão muito importante: para mim, hoje, tão importante quantos as soluções estéticas, quanto ao desfile de fato apresentado na Avenida, é a minha percepção e o quanto de mim eu embuto dentro dos valores da mensagem de um enredo para chegar nas pessoas. Até porque, daqui a 10, 20, 30 anos, as pessoas podem não se lembrar como era o abre-alas da Águia de Ouro que ganhou o Carnaval de 2020, mas elas vão lembrar de qual era a mensagem que a escola queria passar naquele Carnaval. E é aí que o meu legado como carnavalesco, como um criador, como um artista de uma festa tão ampla e genuinamente nacional como o Carnaval se faz presente. A minha figura se faz presente daqui a alguns anos quando as pessoas não lembrarem determinadas questões do desfile, mas lembrarem qual era a mensagem que a escola passou. Hoje, para mim, o domínio da mensagem é fundamental.
A minha expectativa para esse projeto é que ele seja grandioso o suficiente para sim, levar a escola a um possível bicampeonato, porém para que ele seja um legado, para que a mensagem sobreviva a esse Carnaval de 2021 e reverbere para todos os meios, os religiosos, educativos, acadêmicos, os guetos, as plataformas de comunicação, que ele sobreviva a função de dar embasamento a um desfile de um determinado Carnaval, para que a mensagem seja tão transcendental que ela consiga reverberar e inspirar futuras gerações, futuros estudiosos de Carnaval que, quando chegarem no capítulo do Carnaval de 2021, vejam no desfile, no enredo, na proposta da Águia de Ouro, no projeto da Águia de Ouro uma razão para falar “olha, esse tema merece uma consideração diferenciada, porque ali existe pesquisa, existe intensidade de narrativa, existe uma mensagem decodificada que nos faz refletir e sempre buscar aprimorar”. Afinal de contas, o desfile de uma escola de samba — como mensagem, estou dizendo — é uma obra aberta. Qualquer pessoa pode gerar desdobramentos, debates, discussões. E o que mais me enriquece e me satisfaz como carnavalesco é perceber, anos depois de um determinado desfile, acadêmicos, estudiosos me procurando para poder entender como foi aquele Carnaval, historiadores e pesquisadores [para] entenderem como aquela mensagem se construiu e se eternizou a ponto de eles, naquele momento, sentirem a necessidade de me procurar para que eu falasse mais sobre aquele tema, muito além do que se mostrou esteticamente na Avenida.
Em 2020, a Águia de Ouro conquistou o título inédito de campeã do Carnaval paulistano com o enredo “O Poder do Saber – Se Saber é Poder… Quem Sabe Faz a Hora, Não Espera Acontecer”.